sala de música

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Priscilla Campos

na noite do
primeiro enigma,
o piano
pertencia à
varanda
como os olhos da medusa
pertencem à morte,
como as minhas mãos
pertencem ao sinal
de número três
atrás de sua orelha esquerda,
como o coração
pertence ao externo de
qualquer corpo,
como a saída do amor
pertence ao aquário vazio
embaixo de cada cama.

você andava descalço
pela casa
aos tropeços
à procura do trompete
há tanto esquecido pois
seu fôlego passou por
oscilações definitivas
(o cigarro, as noites sem estrelas)
e a respiração tornou-se
um desacordo justo
entre você
e o mundo.

tínhamos como
relevo possível
as almofadas pelo chão,
o sofá um pouco torto,
o tapete sujo de vinho,
o violão de seu pai
em posição de
descanso,
cães ausentes,
fotografias antigas
de sua família,
um quadro
sem propósito
acima de nossas cabeças
sempre tão distantes,
e, ao mesmo tempo,
tão imediatas
na linha de sucessão
daquele palácio iluminado
onde os reis
não enxergam
que a soberania é só
mais uma forma
de distrair
os nossos equívocos.

na noite do
primeiro enigma,
a minha palavra
esteve nas ruas
de sua infância,
o seu sorriso
esteve no mapa
de uma cidade
portuária.
o seu olhar,
presença constante
no ponto de fuga
entre
o meu ombro
e o oboé partido
você me disse:
volto aqui porque
o lugar onde nascemos
é, sobretudo, um
fantasma obstinado,
atento, em disciplina;
um fantasma-soldado,
responsável por nossas
fugas e nossas revoltas,
pronto para nos agarrar
não importa
a velocidade da disparada.

eu ainda não sabia,
mas celebrávamos
a decadência da
orquestra.
fogos, ruídos,
beijos, ciências
do som, violências
sem reparos,
pratos caídos,
deslocamento de braços,
vento forte, o piano
sozinho
enquanto nós,
investigadores do tempo,
permanecíamos em
busca do vulcão, pois
as estruturas geológicas
são provas finais
de que a terra
não espera retornos,
egoísta e impaciente
como eu e você,
cansados, exaustos,
ardendo no mesmo
ritmo do progresso
do sol.

 

anotações de combate

PEIXES

Priscilla Campos

você esteve comigo na formação
da trincheira de número um
composta por nós e mais
dois, Octavio e Roberto,
ambos soldados experientes
dispostos a entender as armas
como extensões de um corpo
débil, impróprio, medíocre;
dispostos, acima de tudo,
a aceitar o cano como
um túnel para o futuro,
espaço de transição entre
esta carne e a outra,
afinal, a bala é apenas o que
nos une aos nossos
horizontes, às nossas fúrias.

ali, ainda não sabíamos:
qualquer campo aberto é apenas
o começo de uma guerra;
qualquer chuva, prestes a cair,
é somente a possibilidade
da terra fértil,
lama fina ou
involuntária umidade;
qualquer luz
é sinônimo de corpos expostos,
inconveniente claridade
que me faz enxergar todos os sinais
fiéis as suas costas e também
uma pista certeira, norte para
o inimigo que se aproxima;
para o alguém desconhecido que
vai cortar os meus pulmões,
destruir o meu útero
dilacerar, talvez, a
minha orelha,
ou ainda a minha mão

que você segurou, por acidente, minutos antes
do silêncio da orquestra,
no instante em que
dois ou três sujeitos na plateia
abriam um sorriso
pois a música,
ela salva, você me disse,
e então, voltamos distraídos para casa,
você pensando sobre como gostaria
de ter a postura de um violinista
eu pensando sobre como a palavra
não sustenta o transe
a hipnose – eu te disse, de repente –
está na expansão domesticada
de um ruído.

no primeiro tiro,
você, de óculos,
vestia uma camisa vermelha
amassada e seca;
eu estava seminua,
fazia calor,
pretendíamos nadar
a tarde inteira
naquele rio escuro
(uma vez, eu sonhei
com as suas pernas, tão brancas,
separadas de seu tronco,
a boiar tranquilas
em mares da costa amalfitana)

sua boca estava cheia de
peixe frito
(as we know,
a vida em água doce
não se abala
com o prenúncio
da morte);
eu dizia para o Roberto:
me ensine a atirar como Tinajero,
então, veio
o estampido.

o sangue é arrebatador,
pois nos confunde,
tecido vivo
que sentencia
a ferida
sempre nos certificando
do erro, da falha improvável
que nos transforma em
constantes
proporções arriscadas;
o primeiro a cair foi Octavio,
Roberto gritava
“vocês são uns dementes
essas balas são um
golpe miserável”
eu sabia que o horror,
o diabo mais brilhante,
lambia as espinhas
do peixe e de todos nós.

você tremia, as pernas brancas
moles e frias,
sua camisa, ensopada
seus óculos, destroçados
seu cabelo, mais bonito
do que nunca.
você mordeu a minha mão e
sussurrou “eu menti, a música
é um engano filho da puta”
seus olhos permaneceram
abertos por longas horas,
assim como na madrugada
em que corríamos pela avenida
vazia e você me disse:
uma cama te espera
da mesma forma que um
peixe aguarda a próxima maré.

O papel de parede amarelo

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Maria Carolina Morais

O papel de parede amarelo foi a princípio considerado um primoroso conto insólito sobre o enlouquecimento de uma mulher na casa de campo alugada pelo marido. Mas isso é pouco; um olhar mais atento evidencia que ele é capaz de ir muito além do impacto emocional. Publicado pela primeira vez em 1892, o conto é permeado por fortes relatos sobre a condição da mulher branca de classe média à época, temática que, aliás, é bastante pronunciada em toda a obra da autora Charlotte Perkins Gilman, destacada feminista militante de seu tempo. Ao problematizar e questionar as relações entre homens e mulheres, o drama pessoal em O papel de parede amarelo figura entre os poucos trabalhos do século XIX a abordar e confrontar com franqueza a política sexual da época.

A narrativa em primeira pessoa traz nuances autobiográficas das vivências de Perkins através de uma mulher que, ao lentamente enlouquecer, vai projetando sobre o papel de parede no quarto em que estava hospedada a própria condição do sexo feminino em uma sociedade estritamente patriarcal. Além de aterrorizador e inquietante tal qual uma obra de Poe, o conto é um solo de reflexão sobre a triste condição feminina no século XIX, parte da qual perdura até os nossos tempos. O papel de parede com o qual a narradora se embate representa a situação das mulheres, presas a padrões e privadas de liberdade, a arrastar-se na busca de alguma emancipação.

Segundo Elaine R. Hedges, acadêmica que assina o excelente posfácio na edição recentemente publicada pela José Olympio, O papel de parede amarelo permaneceu esquecido por mais de 50 anos, assim como sua autora, e foi só redescoberto pelos movimentos feministas dos anos 60/70, voltando hoje a ganhar destaque com o recrudescimento da pauta feminista, que atua com força renovada.

Destacamos os seguintes trechos da análise de Hedges:

“Suas intuições e tentativas desesperadas de definir e curar a si mesma, ao traçar o padrão desconcertante do papel e decifrar seu significado, são armas insignificantes contra a certeza masculina do marido, cuja atitude em relação a ela é chama-la de ‘pobrezinha’ e dar-lhe permissão para que fique ‘doente o quanto quiser’”. (p. 94)

“Ela queria estrangular a mulher atrás do papel – amarrá-la com uma corda. Porque essa mulher, o trágico produto de sua sociedade, é naturalmente o próprio eu da narradora. E, ao rejeitar essa mulher, ela poderia libertar a outra, aprisionada dentro de si mesma”. (p. 95)

“(…) o fato de serem tratadas como brinquedos ou como crianças e de por conta disso perderem grande parte de sua autoconfiança. É a toda essa classe de mulheres derrotadas, ou mesmo aniquiladas, a todo esse grande corpus de talento desperdiçado, ou semidesperdiçado, que se dirige O papel de parede amarelo”. (p. 98)

O conto, que já foi publicado por algumas editoras no Brasil e traduzido por Flávia Yacuban, Bráulio Tavares e Stelamaris Coser, foi há pouco tempo relançado pela José Olympio, que fez um primoroso trabalho de edição, enriquecendo ainda mais a obra. Traduzido por Diogo Henriques, com prefácio de Marcia Tiburi e o excelente ensaio feito em 1973 pela professora Elaine R. Hedges, a edição nos ajuda a compreender a verdadeira dimensão de uma das grandes obras-primas da literatura norte-americana do século XIX.

É, portanto, de se compreender por que este conto antigo, de uma autora pouco conhecida no Brasil, está sendo publicado com uma edição própria, mais de 120 anos após sua primeira publicação nos Estados Unidos. Seu apuro estético e narrativo, e seu robusto conteúdo feminista, conferem a O papel de parede amarelo lugar de destaque entre as grandes obras literárias feministas e merece ser revisitado e comentado como tal.

 

Tardes de verão

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Priscilla Campos

durante dez dias
nós estivemos no exato
instante em que
um nadador
dobra os joelhos
para lançar-se
na piscina olímpica;
a rigorosa fração de tempo
onde o que contorce é também
o que sustenta

naquelas manhãs,
o fim do sono
era a constatação
do momento-zero
onde nada
importa, só a piscina;
espaço total que
segura
um corpo
decidido a afundar

óculos, maiô, touca
armadura aquática
completa para um
passeio na Praça da República.
respiro fundo
encaro a água
fria
january has
april showers
você me pergunta sobre
montanhas, mirantes de cidades
distantes,
tesouros dispersos
nos mares orientais,
ajusto o elástico do
meu óculos, pronta para
o pulo

houve um minuto:
no primeiro rasgo
da patela esquerda,
seu corpo
esteve sob a luz dos raios,
relâmpagos de uma
noite final;
você mirou
a cidade fechada
enquanto alguém
clamava aos deuses
pedindo pela cura
que se encontra
na origem de toda
tempestade

(me pergunto quanto
tempo ainda
vou permanecer
com os joelhos
arqueados
à espera do
azulejo submerso)

nós dois sabemos
que a queda
leva ao sussurro da água
ou ainda:
nos direciona
à calmaria perigosa do fundo
algo como
o silêncio dos vivos
diante do grito dos que
se afogam;

enxergo a piscina
sob o olhar falso das
lentes pouco nítidas,
penso que
o lugar dos sobreviventes
é sempre mais difícil
pois um joelho retorcido
apenas alcança
autonomia
numa nova
possibilidade de
resistir ao desejo
de fracasso.

Em busca do outro

maria valeriaMaria Carolina Morais

Frases sem ponto final, réstias de pensamentos que não se completam salpicam o relato de Alice, protagonista do romance Quarenta Dias, de Maria Valéria Rezende. Toda memória possui lacunas preenchidas com a imaginação; mas, para algumas pessoas, existem espaços vazios muito mais dolorosos, deixados por desaparecimentos de parentes ou pessoas queridas. Então, como uma história que trata de desaparecimentos poderia ter sempre frases completas? Como uma história sobre pessoas invisíveis poderia deixar tudo à mostra, quando a polifonia de dores abafadas fez Alice explodir em lágrimas?

A autora fez uso das veias abertas da ficção para relatar uma realidade tal como a vivenciou, colocando as tessituras da cidade ao avesso e mostrando suas costuras e remendos, o que está recôndito por trás das frágeis estruturas do cotidiano, o sofrimento que atravessa a pobreza, a vida dos outros que não vemos. Quarenta Dias não busca, portanto, respostas, pontos finais, mas faz perguntas, nos intriga pelas ruelas e becos que parecem não ter fim e, ao mesmo tempo, não dar em lugar nenhum.

Tal qual a Alice de Carroll, deparamo-nos com outra Alice, uma senhora que fora intimada pela filha a mudar-se de João Pessoa para Porto Alegre e tornar-se então “avó profissional”. Testemunhamos os caprichos da filha, Norinha, que inunda a mãe de culpas pela infância e adolescência solitária enquanto Alice trabalhava duro para sustentá-la, armando um complô para enviar a mãe a Porto Alegre. No livro, narrado em primeira pessoa, somos os olhos por trás da boneca Barbie e ouvimos os desabafos de Alice, uma senhora acometida pela sensação de invisibilidade, de estar cada vez menor diante das vontades alheias. E quanto mais ela sente estar sumindo, mais ela cresce dentro de nós, ao percebermos que envelhecer em nossa sociedade significa caminhar em direção ao desaparecimento ainda em vida. Alice, que nunca atendera às suas próprias vontades, havia finalmente chegado a uma idade em que poderia talvez deixar que sua vida seguisse seu próprio ritmo, mas ela então se vê acuada por uma filha que não consegue abrir mão de suas prioridades para ter uma criança. O pedido de ajuda à futura avó é, portanto, uma intimação. Retrato de uma geração hoje adulta que está ainda perdida na adolescência imperfeita.

Após a venda de seus móveis, Alice, “oca como um aspirador de pó”, sabe que dentro de seu apartamento vazio em João Pessoa, persiste nela a mágoa e a insurgência contra algo que lhe parecia errado. Mas ela nunca se permitira estar certa e preferia a autocomiseração a bancar o ônus de seguir seus desejos e atender a seus protestos. Diante de seu estranhamento à vida ready-made em que a filha a inseriu, dos apartamentos e vidas planejadas como nas propagandas do mercado imobiliário, com móveis pretos e brancos frios, que não carregam nenhuma lembrança ou afeto, Alice se sente perdida entre o lixo deixado pelo progresso, as edificações da modernidade e a montanha de memórias que de nada parecem valer em meio a esse processo desregulado de construção e destruição. Das novidades que nascem em meio aos entulhos.

É em meio ao desnorteio provocado pela viagem, pelas lembranças de toda uma vida a milhares de quilômetros dali, pela sensação de estar sendo comprimida até estourar, que Alice resolve abandonar o roteiro que estavam lhe planejando. Poucos dias após chegar a Porto Alegre, ela é acometida por um surto de revolta, e some pela nova cidade, portando apenas uma mochila e um cartão da poupança com poucos recursos. Seu objetivo é justamente não ser encontrada, desaparecer. E é justamente enquanto tenta se perder de tudo, deixar-se para trás junto com a vergonha de si mesma, que ela, no entanto, propõe-se a procurar uma pessoa desaparecida, Cícero Araújo. E nessa caminhada depara-se com vários “outros” que passam noites insones em hospitais, dormem debaixo de pontes e empurram carrinhos de supermercado pelas ruas da cidade. Pessoas que gostariam de ser vistas, pessoas que gostariam de se perder.

A partir daí, Alice nos relata uma experiência similar a um jogo de espelhos distorcidos, no qual a protagonista convive durante 40 dias com sujeitos que vivem nas margens do que a classe média aceita como o real. Cícero Araújo era o filho de uma conhecida em João Pessoa que, após certo tempo morando em Porto Alegre, não deu mais notícias. Ele seria apenas uma desculpa que justificaria a fuga de Alice, como o coelho branco que lhe proporcionaria seus descaminhos pela cidade. Alice dá início ao sobe e desce de ladeiras nas comunidades pobres em que pessoas totalmente desconhecidas oferecem uma mão amiga quando ela lhes relata a história do desaparecimento de Cícero. Surge Adelaida, que se voluntaria a entrar por becos e mais becos com Alice, nos quais encontram mais e mais pessoas que também têm seus próprios relatos de pessoas desaparecidas, suas próprias lacunas abertas e dolorosas. Sem o auxílio do poder público, resta-lhes apenas rezar e aguardar por um possível retorno, criando finais felizes em suas fantasias; aliviando, assim, a dor.

É nessa realidade que Alice se encontra com os chamados “brasileirinhos” como ela, que não carregam fortes traços europeus. Brasileirinhos que pedem auxílio a santas não reconhecidas pela igreja, como a Maria Degolada; divindades dignas de forte devoção nos restos da cidade, pois representam pessoas comuns que cometeram erros e pagaram por eles com a vida, que foram vítimas da realidade social, ou que às vezes foram capazes de burlar a lei por necessidades maiores. Santos como a Maria Degolada não representam, portanto, seres imaculados que viveram em realidades e países distantes, mas essa outra realidade, dessa toca em que Alice termina por cair, irmanando-se ao sofrimento do povo.

Um livro de temática similar é a reportagem em primeira pessoa de George Orwell em Na pior em Paris e em Londres, na qual o autor viveu temporariamente nas piores condições possíveis nos abrigos para os mendigos nas duas capitais. Em algum momento ele conclui que se ser mendigo fosse uma profissão rentável, este logo seria reconhecido como alguém respeitável. E é em meio aos restos das coisas que um dia foram belas (muitas vezes porque foram caras) que vagueiam refugos de pessoas invisibilizadas por sua completa falta de bens materiais. Contudo, Quarenta Dias também nos mostra como os brasileirinhos e idosos se diluem na névoa apressada da cidade, assim como os mendigos e os loucos.

E qual não foi o espanto de Alice ao encontrar uma nesga de semelhança entre ela e uma mendiga que encontrara no parque… Com o passar dos dias, no entanto, suas imagens avançam uma em direção a outra e se fundem numa só. Alice cada vez mais se encontra numa situação de vulnerabilidade social, contando com a simpatia principalmente de conterrâneos e moradores de rua para encontrar um pouco de conforto. Para a maioria das pessoas locais com quem ela quem falava, Paraíba, Pernambuco, Bahia, Ceará eram a mesma coisa – e as pessoas de lá eram praticamente de lugar nenhum. E são justamente essas pessoas de lugar nenhum que conhecem melhor do que ninguém o drama vivido pela mãe de Cícero – a história contada por Alice nesses casos não precisava de um floreio sequer para gerar alguma reação comovida.

É nos tapinhas nas costas que Alice recebe de uma desconhecida em um hospital quando se engasga com algumas pipocas, nas mãos que as duas se dão diante do cansaço da espera de notícias em um hospital, no mate oferecido pelo ex-militante comunista que viu amigos morrerem durante a ditadura e não conseguiu mais livrar-se do medo e do horror que sentiu, na acolhida de Lola que acreditava incrédula na história de vida de Alice, que ela encontra conforto e solidariedade. A empatia de que tanto precisava. Adentrando nesse universo paralelo que sustenta a si mesmo com os inúmeros braços cansados e não espera nada das altas camadas sociais. Seres invisíveis que se veem e reconhecem em suas condições de meros peões manipulados pelas circunstâncias em que se encontram. E por isso se dão as mãos.

É nessa quarentena em que Alice se afasta de sua realidade, isolando-se em outra, que ela consegue criar alguns laços afetivos verdadeiros; e quando o sofrimento dessas vidas praticamente feitas de “corpos e dores” tornou-se insuportável, ela permitiu-se esmorecer com ele.

Em meio à narrativa, encontramos também citações de outros escritores contemporâneos que abrem cada capítulo, em sua maioria brasileiros. Como se Maria Valéria quisesse ao mesmo tempo prestar uma homenagem aos escritores que admira, e também deixar claro que sua escrita é constituída pelo outro e que as palavras que já leu estão presentes no que ela produz. As citações, aliás, contribuem de fato para a compreensão do romance. A autora parece fazer uma reverência à enorme gama de excelentes escritores espalhados pelo país, mas que, infelizmente, ainda não possuem projeção nacional; de certa forma, também invisibilizados. E ela lhes dá as mãos.

Por fim, além da grande quantidade de personagens que cruzam com Alice, não se pode esquecer a ilustre presença da boneca Barbie, interlocutora da protagonista. Barbie enfeita a capa do caderno velho no qual Alice narra suas lembranças daqueles 40 dias, numa tentativa de organizar suas ideias e expurgar suas vivências extremas. Assim como Alice, a mocinha de plástico – um dos personagens principais do “caos material” do nosso cotidiano, receptáculo dos desejos plastificados das crianças e de seus ideais de perfeição – também está muda, desprovida de desejos ou pensamentos. Porém Alice, em seu surto de revolta, sua busca por alguma autonomia, consegue sair desse lugar de mera vítima para reescrever sua história.

A trajetória de Alice desemboca na vida como mendiga, entre os mesmos tantos com os quais sempre cruzou, essas aves migratórias desgarradas, à espera de seu bando, não se entregando a “bandos rasteiros”, fiéis à sua loucura e inadequação, e cientes de que ninguém, infelizmente, está por eles neste mundo. Alice, no entanto, volta ao apartamento preto e branco que a filha lhe arranjou; afinal, viver no mais fundo poço da dignidade social tampouco era prazeroso. Mas a experiência que viveu certamente foi algo mais próximo do desamparo que ela sentia por dentro do que a vida presa no insosso cotidiano planejado e murado que lhe aguardava.

Estudo sobre a simetria

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Priscilla Campos

“For being, the map is as it was:
A diagram
Of how the world might look could we
Maintain a lasting,
Perfect distance from what is.”

Mark Strand

nos desenhos de Albrecht
existe a ideia de dominar
aquilo que é inacessível;
o corpo como um símbolo
da monumentalidade,
espaço de condensação dos tempos,
local de batalhas e ruínas,
topografias harmônicas de carne e osso.

eu não sei precisar o momento
em que você tirou a camisa
pela primeira vez ou
o instante exato em que
eu vi o seu tronco à meia luz

se eu pudesse estar de novo,
diante de seu corpo livre,
tentaria traçar as linhas
possíveis entre o quadril
e o pescoço;
uma espécie de mapa daquele
momento assombroso
no qual não sabemos se estamos
mortos ou se
voltaremos à vida;
músculo contorcido em pausa atônita.

assim como os desenhos de Albrecht,
um mapa é a representação de qualquer coisa
sem comando;
impérios, rios, cordilheiras,
movimentos migratórios
nada disso obedece à cartografia;
um mapa é, sobretudo,
a vontade de apreender
qualquer narrativa ausente

ou ainda:
um mapa é o impulso de organizar
essa história que não é nossa,
mas que insiste em estar entre
o papel e a composição dos corpos;
entre a longitude, o trópico
e a sua língua em movimento
circular.

tem uma coisa que
eu não consigo entender:
a sua capacidade de fazer
cálculos matemáticos
depois de apertar
as minhas costas contra
as suas mãos
repetidas vezes, como se
fosse uma pista sinuosa que
deveria ser percorrida com atenção,
pois, cruzá-la  tornou-se um ato
compulsivo, (como é linda a sua mão)

o mais importante ao
observarmos mapas,
desenhos anatômicos de um
ilustrador alemão do século 15,
e o seu corpo de bruços
em minha cama,
é o fato de que todos eles
simbolizam acidentes gráficos
tão distantes,
perdidos
entre uma manhã de sábado,
um ponto aleatório no meio
da autoestrada italiana
e o Renascimento europeu

afinal, a construção
de uma geografia
nos ensina que,
por mais simétricas que sejam
nossas linhas,
não é possível prever
a chegada de um navio,
provindo de tormentas e
guerras climáticas,
numa ilha
ainda sem nome.

Um par de meias de seda

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Maria Carolina Morais

Kate Chopin (1850-1904, imagem acima) foi uma escritora norte-americana cuja produção, em sua maior parte sobre a vida e o cotidiano das mulheres no século XIX, falava sobre aquilo que ainda hoje, mais de um século depois, ainda são caros à literatura. Seus temas buscavam as amarras sociais impostas às mulheres, e suas personagens acabavam cedendo aos seus próprios desejos, o que muitas vezes significava bater de frente com o intocável patriarcado. É considerada, por esse motivo, uma das primeiras escritoras feministas. Seu principal trabalho, o romance The Awakening, que narra a história de amor entre uma mulher e um homem casado, rendeu-lhe uma péssima recepção por uma crítica escandalizada – afinal, a personagem principal não demonstrava remorso por seus atos. Relativamente reconhecida enquanto viva, após sua morte a autora ficou por décadas esquecida, sendo considerada uma artista local de menor importância, até que uma biografia lançada nos anos 60 e os movimentos feministas norte-americanos resgatassem sua obra contra o obscurecimento imposto pelo cânone masculino na literatura.

Foi por seu histórico, e por saber que sua obra merece se aproximar do público brasileiro, que coloco abaixo a tradução que fiz para um de seus contos. Com vocês,

Um par de meias de seda

Kate Chopin

A pequena Sra. Sommers um dia viu-se a inesperada possuidora de quinze dólares. Parecia-lhe um volume de dinheiro muito grande, e a forma como ele preenchia e inchava sua gasta e velha porte-monnaie lhe dava uma sensação de importância que ela há anos não desfrutava.

O investimento foi uma questão que muito a ocupou. Durante um dia ou dois, ela vagou como se devaneasse, mas estava deveras absorta em cálculos e especulações. Não queria agir com pressa, ou fazer qualquer coisa da qual poderia se arrepender depois. Mas foi durante as calmas horas da noite, quando permaneceu acordada revolvendo planos em sua mente, que ela viu com clareza o caminho para um uso sensato e apropriado do dinheiro.

Um ou dois dólares deveriam ser acrescentados ao preço em geral pago pelos sapatos de Janie, o que garantiria sua durabilidade por um tempo consideravelmente maior do que o normal. Ela compraria muitos e muitos metros de percal para novas blusas para os garotos e Janie e Mag. Pretendera fazer as antigas bastarem por meio de remendos habilidosos. Mag deveria ganhar outra camisola. Ela vira algumas belas estampas, verdadeiras pechinchas nas vitrines das lojas. E ainda sobraria o bastante para novas meias – dois pares para cada um – e quanta remendagem isso iria poupar por um tempo! Compraria boinas para os meninos e chapéus de palha para as meninas. O vislumbre de sua pequena prole exibindo viço, delicadeza e frescor uma vez na vida a animou e a deixou irrequieta e insone de expectativa.

Os vizinhos às vezes falavam de certos “dias melhores” que a pequena Sra. Sommers conhecera antes de nem sequer pensar em ser a Sra. Sommers. Ela mesma não se permitia nenhuma retrospecção mórbida como essa. Não tinha tempo – nenhum segundo de tempo para dedicar ao passado. As necessidades do presente absorviam cada uma de suas faculdades. Uma visão do futuro como algum monstro sombrio e macilento às vezes a apavorava, mas, por sorte, o amanhã nunca chega.

A Sra. Sommers era daquelas que sabia o valor das pechinchas; que podia passar horas abrindo caminho centímetro por centímetro rumo ao objeto desejado em promoção. Podia fazê-lo a cotoveladas se necessário; havia aprendido a pegar uma mercadoria, segurá-la e agarrá-la com persistência e determinação até que sua vez de ser atendida chegasse, fosse quando fosse.

Mas naquele dia ela estava um pouco fraca e cansada. Fizera um almoço leve – não! quando pensou no assunto, entre alimentar as crianças e arrumar a casa, e preparar-se para o combate nas lojas, ela havia na verdade esquecido de almoçar qualquer coisa!

Sentou-se em uma banqueta giratória diante de um balcão que estava deserto em comparação aos outros, tentando juntar força e coragem para atravessar uma multidão ávida que estava sitiando fortificações de suaves fazendas estampadas e de camisaria. Uma sensação de completo esgotamento a dominou e ela pousou a mão a esmo sobre o balcão. Ela não usava luvas. Aos poucos, percebeu que sua mão havia encontrado algo muito consolador, muito agradável de tocar. Olhou para baixo e viu que sua mão estava sobre uma pilha de meias de seda. Uma placa próxima anunciava que o preço delas havia caído de $2.50 para $1.98; e uma jovem que estava atrás do balcão lhe perguntou se ela gostaria de conhecer sua linha de meias e peúgas de seda. Ela sorriu, como se tivesse sido convidada a examinar uma tiara de diamantes com o objetivo final de comprá-la. Mas continuou a tatear as luxuosas coisas macias e resplandecentes – agora com as duas mãos, erguendo-as no alto para vê-las brilhar, e senti-las deslizar como serpentes por entre os dedos.

Duas manchas rubras de repente apareceram em suas bochechas pálidas. Ela levantou os olhos para a garota.

– Acha que tem algum tamanho 38 por aqui?

Havia várias de número 38. Na verdade, havia mais daquele tamanho do que qualquer outro. Havia um par azul-claro; alguns na cor lavanda, alguns pretos, e vários tons de cinza e canela. A Sra. Sommers selecionou um par preto e olhou para elas muito longa e atentamente. Fingia estar examinando sua textura, a qual a vendedora garantiu ser excelente.

– Um dólar e noventa e oito centavos – meditou em voz alta. – Bem, eu vou levar este par – deu uma nota de $5 à garota e esperou pelo troco e por seu pacote. Como o pacote era pequenino! Parecia perdido nas profundezas de sua velha e gasta sacola de compras.

Depois disso, a Sra. Sommers não foi em direção ao balcão de ofertas. Ela pegou o elevador, que a levou parar um andar superior, na área das salas de espera femininas. Aqui, em um canto isolado, ela trocou suas meias de algodão pelas novas de seda que havia acabado de comprar. Não estava passando por nenhum processo mental intenso ou argumentando consigo mesma, tampouco estava tentando explicar à sua satisfação o motivo de seu ato. Ela absolutamente não estava pensando. Naquele instante, parecia estar descansando daquela função laboriosa e fatigante e ter se abandonado ao impulso mecânico que dirigia suas ações e a libertava de responsabilidades.

Como era bom o toque da seda crua em sua pele! Ela teve vontade de se recostar na cadeira estofada e deleitar-se por um tempo nesse esplendor, o que fez por um instante. Depois, calçou de volta os sapatos, enrolou as meias de algodão e as enfiou na sacola. Em seguida, foi direto ao departamento de calçados e sentou-se para ser atendida.

Ela era implicante. O atendente não conseguia compreendê-la; não conseguia harmonizar seus sapatos com as meias, e ela não se satisfazia facilmente. Ela segurou as saias e virou os pés para um lado e a cabeça para o outro enquanto olhava as botas elegantes de bico fino. Seu pé e tornozelo estavam muito bonitos. Não conseguia se dar conta de que eles lhe pertenciam e eram uma parte dela. Queria um caimento primoroso e moderno, explicou ao jovem rapaz que a atendia, e não se importava com a diferença de um dólar ou dois no preço, contanto que conseguisse o que desejava.

Fazia muito tempo desde que a Sra. Sommers tivera luvas sob medida. Nas raras ocasiões em que comprara um par, elas eram sempre “pechinchas”, tão baratas que teria sido absurdo e irracional ter esperado que fossem ajustadas à mão.

Agora, ela repousava o cotovelo na almofada do balcão de luvas, e uma bela e jovem criatura, delicada e de gestos ágeis, colocou uma “pelica” longa na mão da Sra. Sommers. Vestiu-a com suavidade sobre o punho e a abotoou habilidosamente, e por alguns segundos ambas se perderam numa contemplação admirativa da pequena mão simetricamente enluvada. Mas existiam outros lugares onde se podia gastar dinheiro.

Havia livros e revistas empilhados na janela de uma banca a alguns passos na rua. A Sra. Sommers comprou duas revistas caras como aquelas que costumara ler na época em que estivera acostumada a ler outras coisas agradáveis. Levou-as sem embrulho. Da melhor forma possível, ela levantava as saias nos cruzamentos. Suas meias, botas e luvas bem ajustadas fizeram milagres em seu comportamento – haviam lhe conferido uma sensação de confiança, uma sensação de pertencimento à multidão bem-vestida.

Ela estava com muita fome. Em outra época, teria silenciado o desejo de comer até chegar em casa, onde prepararia uma xícara de chá e faria um lanche com qualquer coisa que estivesse disponível. Mas o impulso que a guiava não lhe permitia admitir tal pensamento.
Havia um restaurante na esquina. Ela nunca havia entrado por suas portas; do lado de fora, às vezes via relances do damasco impecável e do cristal reluzente, e dos garçons de passos suaves servindo pessoas elegantes.

Ao entrar, sua aparência não causou surpresa alguma, nenhuma consternação, como ela em parte temera. Sentou-se sozinha a uma pequena mesa, e um garçom atencioso logo se aproximou para anotar seu pedido. Ela não queria abundância; ansiava por uma pequena refeição refinada e apetitosa, uma costeleta roliça com agrião, uma coisa doce – um crème-frappée, por exemplo; uma taça de vinho do Reno, e, por fim, uma xícara pequena de café preto.

Enquanto esperava para ser servida, ela tirou as luvas muito vagarosamente e as pôs a seu lado. Depois, pegou uma revista e a folheou, cortando as páginas com a lâmina cega da faca. Era tudo muito agradável. O damasco era ainda mais impecável do que parecera através da janela, e o cristal ainda mais reluzente. Havia senhoras e senhores silenciosos, que não a perceberam, almoçando em mesas pequenas como a dela. Podia-se ouvir uma melodia delicada e encantadora, e uma brisa suave estava soprando pela janela. Ela saboreou um pedaço, depois leu uma palavra ou outra, bebeu o vinho ambarino e agitou os dedos nas meias de seda. O quanto isso custava não fazia diferença. Ela contou o dinheiro na frente do garçom e deixou uma moeda a mais em sua bandeja, pela qual ele fez uma reverência como se estivesse diante de uma princesa de sangue real.

Ainda havia dinheiro na bolsa, e sua próxima tentação se apresentou na forma de um cartaz de matinê.

Pouco tempo depois, ela entrou no teatro; a peça havia começado e a casa lhe pareceu estar cheia. Mas aqui e acolá havia assentos vazios, e ela foi acomodada em um deles, entre mulheres vestidas de forma brilhante que lá haviam ido para matar tempo, comer doces e exibir suas vestes espampanantes. Havia muitos outros que estavam lá unicamente pela peça e a atuação. Pode-se seguramente afirmar que nenhum dos presentes apresentava exatamente a atitude que a Sra. Sommers tinha em relação a seus arredores. Ela observou o todo – palco, atores e pessoas em uma vasta impressão, e o absorveu e o apreciou. Riu da comédia e chorou – ela e a mulher espalhafatosa a seu lado choraram pela tragédia. E conversaram um pouco sobre o assunto. E a mulher espalhafatosa enxugou os olhos e fungou em um pequenino quadrado de renda perfumada e delicada e passou sua caixa de doces para a pequena Sra. Sommers.

A peça acabou, a música cessou, a multidão saiu. Era como se um sonho tivesse terminado. As pessoas se dispersaram em todas as direções. A Sra. Sommers foi para a esquina e esperou pelo bonde.

Um homem de olhos atentos, que estava sentado na frente dela, parecia apreciar o estudo de seu rosto pequeno e pálido. Decifrar o que via ali o deixava confuso. Na verdade, ele nada via – a menos que fosse mago o suficiente para detectar um desejo pungente, uma ânsia poderosa de que o bonde nunca parasse em lugar nenhum, mas seguisse adiante com ela para sempre.

Carol, de Patricia Highsmith

Carol

Maria Carolina Morais

Rostos e corpos customizados de meninas jazem nas vitrines e prateleiras da Frankenberg’s enquanto Therese e outras atendentes se esforçam para satisfazer os desejos dos clientes. Pedem-se bonecas grandes ou pequenas, de cabelos cacheados ou lisos, olhos azuis, castanhos ou verdes. Bonecas que fazem xixi, que trocam de roupa, que cantam, que riem. E, ainda assim, Therese muitas vezes tem de desbravar o estoque em busca de um modelo de boneca com as características específicas demandadas pela exigente clientela. Enquanto isso, entre “comentários perfeitos em sua banalidade” dentro da loja, ela passa os dias como se flutuasse em um marasmo de rostos idênticos, de uma vida sem propósito.

Em seu cotidiano, eram curtas as distâncias entre Therese e as bonecas enquanto ela atendia a pedidos, subia e descia do estoque, conversava com outras vendedoras, encaixando-se perfeitamente no papel de mulher ordeira e cordial. Somente ao chegar em casa e encontrar-se com suas maquetes de papelão ela podia deparar-se com quem de fato era, ou gostaria de ser.

O trabalho como cenógrafa vem a calhar para a personagem principal desse romance escrito no final da década de 1940 por Patrícia Highsmith. Afinal, Therese vivia em inúmeros cenários armados pelas conveniências sociais onde um casamento, uma vida pacata e pouco arrebatadora a aguardavam. Ao ir à casa de uma idosa colega de trabalho, a Sra. Robichek, Therese se pergunta assustada se a vida dela terminaria daquele mesmo jeito, sem surpresas ou perspectivas, sem nenhuma correspondência ou novidade ao fim do dia, sem nada a esperar do presente ou do futuro. Seria a vida que desejava apenas um sonho e aquele momento em que estava afundada na poltrona da Sra. Robichek a única e triste realidade? Esse pensamento a fez tirar o vestido velho que a colega lhe dera, e que nela coubera perfeitamente, e sair correndo dali. Fugir era fácil, diz a narradora, quando não se está fugindo de coisa alguma; quando a temida poltrona também é um imenso convite para aninhar-se ali enquanto a liberdade de pensar (e devanear) permanece ilesa.

Até que Carol entra em cena – e todo aquele cotidiano insípido e insosso torna-se, então, insuportável, e as débeis certezas que Therese tinha em relação ao seu tépido relacionamento com Richard Semco perdem por completo o sentido. Ela se apaixona por uma cliente, uma mulher casada de cerca de 30 anos, e desenvolve por ela um amor platônico que beira a obsessão. A imagem de Carol e a paixão que Therese tão prontamente sentiu por aquela imagem deram uma outra coloração à sua vida, impedindo-a de voltar a um mundo em que Carol, e o sentimento que nutria por ela, não existissem. Os frágeis cenários em que Therese transitava e os cenários distantes da realidade que ela também criava eram agora confrontados por um sentimento real. Aquele amor distante era o máximo de realidade que Therese já tivera. E Carol sabia jogar bem com os impulsos de uma jovem que havia acabado de aprender o que significava a palavra desejo.

A narrativa criada Highsmith baseou-se em alguns elementos reais – a autora havia, de fato, trabalhado em uma loja de departamentos e já tivera experiências homossexuais (inclusive, o trabalho temporário na loja serviu para que ela pudesse pagar o tratamento psicanalítico ao qual se submetera para “superar” sua homossexualidade). A Carol “original” fora uma cliente que Highsmith atendera rapidamente no natal e cuja imagem a arrebatou de tal maneira que a autora, em posse dos dados pessoais da freguesa, chegou a segui-la algumas vezes, confessando a sensação de que agia como uma assassina. Mas, na narrativa, todo o suspense que se arma em torno dessa obsessão não passa de um subterfúgio usado por Highsmith para deixar o leitor cheio de incertezas, ávido pela página seguinte. Afinal, foi seu mote principal, o romance entre duas mulheres, que de fato arrebatou o público.

Quando impresso na versão de bolso, Carol foi um sucesso, ultrapassando a venda de um milhão de cópias – à época, a editora que publicou o romance recebeu uma enxurrada de cartas de leitores e leitoras emocionados com o final feliz que as protagonistas receberam. Afinal, até então, romances homossexuais tinham finais trágicos, com mortes e suicídios – único desfecho aceitável. Talvez a própria Highsmith estivesse vislumbrando um final feliz para seus próprios conflitos. No entanto, ela levou décadas para assumir a autoria do romance, dizendo em sua defesa que não gostaria de ser identificada como uma autora de livros homossexuais. Comumente conhecida por suas narrativas policiais, como Pacto sinistro e O talentoso Ripley, Highsmith declarava-se avessa a nichos. Ou, no caso de Carol, avessa a assumir o que dela havia em um de seus livros mais íntimos.

Apesar do amor que Therese dedica a Carol com devoção durante toda a narrativa, chegando a uma preocupante monomania adolescente (e, como toda monomania adolescente, cheia de uma intensidade sem tamanho), observamos a partir do momento em que Therese se sente abandonada por Carol uma importante mudança de perspectiva. Carol em certa ocasião a acusou de preferir “as coisas refletidas em um vidro” – ou seja, a ficção à realidade, as ideias prontas a despeito da experiência de vida. Ela também disse à Therese que suas experiências eram de “segunda mão”, o que a impossibilitava de criar cenários convincentes, uma vez que ela não olhava as coisas de frente. Enquanto estava desnorteada, seguindo Carol aonde quer que fosse, entregando-se ao acaso, Therese não pensava nessa vida real de que Carol falava, nas dificuldades reais que a vida apresenta. Ela não sabia que teria de deixar algumas mágoas em garrafas que nunca se quebrariam, algumas dívidas (como o dinheiro que devia à mãe) em aberto; não sabia que era impossível segurar a felicidade com as duas mãos para que nunca fosse embora. Que o amor não poderia revelar-se de fato amor se vivido através apenas de cenários e imagens.

Para Richard, era fácil cortar o cordão da pipa que estava lá no alto do céu. Afinal, ele podia fazer outra, várias, se quisesse. Mas Therese tinha a impressão de que, para ele, o fato de fazerem sexo não passava de uma questão física, e que o distanciamento que ela sentia, apesar de estarem tão próximos na cama, não o abalava. Para Dannie, um amigo que lhe faz investidas, as pessoas ou se atraem, ou se repelem, como se tudo tivesse uma ciência dada e as coisas se encaixassem perfeitamente; como se o mundo fosse o espectro das mais perfeitas conjunções. Therese, no entanto, não acreditava em tamanha perfeição, nessa “economia vital de como usar as coisas, de como exauri-las”. Para Dannie, essa energia vital que rege o mundo era infinita e uma pessoa pode gostar de algo até a exaustão, pois o afeto é como a lã que nasce nos carneiros: inesgotável. A energia, portanto, estaria nas pessoas e não nas coisas. Mas um gesto qualquer de Dannie quebra sua encenação, a suposta naturalidade fluida de suas palavras. Em seguida, ele lhe tasca um beijo e, ao ser repelido, age como se nada tivesse acontecido, e abre a porta para que Therese possa sair.

Therese, cuja paixão por Carol mantinha essa energia vital que não podia se revelar no mundo real, vivia esse sentimento como se as duas estivessem em um plano paralelo. Era fácil para Richard tratar pessoas como se fossem as pipas que ele empinava, era fácil para Dannie falar em energia vital, em uma perfeição magnética. Os homens heterossexuais, afinal, seguravam as rédeas do mundo (e ainda seguram) – não tinham suas posições de privilégio questionadas. Mas podemos encontrar, ainda que de forma enviesada, duas lições para Therese nesses dois episódios com Richard e Dannie: não se pode querer o que o tempo não leva ou muda. No entanto, Richard tratava-a como um objeto de desejo que ele podia acusar e manipular como bem entendesse, e Dannie, como uma pessoa que cruza seu caminho, mas ele em momento algum reflete sobre a “naturalidade” de suas ações invasivas. Coube, então, à Therese absorver essas formas de olhar com uma perspectiva menos míope.

Ainda que ela estivesse sempre ansiosa por certezas e invejasse a vida previsível e acolchoada de Richard, em que sempre haveria alguém para segurá-lo caso caísse ou se perdesse, a sensação de estar viva ao lado de Carol já não podia ser apagada. E Therese, assim, deixa a Madona espatifar-se no chão, para assombro de Richard. Ela tinha certeza de que “não precisava perguntar se aquilo estava certo”, pois “não era da conta de ninguém, porque aquilo não poderia ser mais certo e perfeito”. Porque nada “a respeito de Richard era tão importante quanto a maneira como Carol secava o rosto com a toalha”. Bastou tão pouco, um leve gesto de Carol, para que Therese deixasse as frágeis estruturas de sua rotina virem abaixo, como maquetes de papelão.

Todo o jogo de cena entre as duas, o drama de um romance proibido, pode nos parecer bobo, vagaroso e sem sentido nos dias atuais. Quantas páginas temos de percorrer até que elas se toquem as mãos? Porém, talvez, possamos levar o drama a um outro patamar, às léguas e léguas percorridas por nós até nos assentarmos na aceitação daquilo que somos. E, apesar de seus clichês e repetições previsíveis, Carol nos mostra as dificuldades que duas mulheres tiveram de vencer em si mesmas para ficarem juntas – Therese precisava parar de evitar a realidade, e Carol, a impor limites à realidade para que pudesse ser quem fato era. Era a mudança ou o oposto – a morte em vida. E o livro termina como se o trenzinho desesperançado que, no início da narrativa, percorre a mesma rota sem nenhum fulgor dentro da Frankenberg’s tivesse a chance de encontrar novos trilhos, e nunca mais olhasse para trás.

P.S.: A tradução da editora L&PM é permeada por um grande excesso de pronomes possessivos e pessoais que “poluem” a leitura, tornando o texto mais pesado. No entanto, a edição que li foi a de bolso; não sei se, ao reeditarem o livro, submeteram-no à necessária revisão que limparia o texto, deixando-o mais fluido e corrigindo também alguns errinhos gramaticais.