Maria Carolina Morais
Kate Chopin (1850-1904, imagem acima) foi uma escritora norte-americana cuja produção, em sua maior parte sobre a vida e o cotidiano das mulheres no século XIX, falava sobre aquilo que ainda hoje, mais de um século depois, ainda são caros à literatura. Seus temas buscavam as amarras sociais impostas às mulheres, e suas personagens acabavam cedendo aos seus próprios desejos, o que muitas vezes significava bater de frente com o intocável patriarcado. É considerada, por esse motivo, uma das primeiras escritoras feministas. Seu principal trabalho, o romance The Awakening, que narra a história de amor entre uma mulher e um homem casado, rendeu-lhe uma péssima recepção por uma crítica escandalizada – afinal, a personagem principal não demonstrava remorso por seus atos. Relativamente reconhecida enquanto viva, após sua morte a autora ficou por décadas esquecida, sendo considerada uma artista local de menor importância, até que uma biografia lançada nos anos 60 e os movimentos feministas norte-americanos resgatassem sua obra contra o obscurecimento imposto pelo cânone masculino na literatura.
Foi por seu histórico, e por saber que sua obra merece se aproximar do público brasileiro, que coloco abaixo a tradução que fiz para um de seus contos. Com vocês,
Um par de meias de seda
Kate Chopin
A pequena Sra. Sommers um dia viu-se a inesperada possuidora de quinze dólares. Parecia-lhe um volume de dinheiro muito grande, e a forma como ele preenchia e inchava sua gasta e velha porte-monnaie lhe dava uma sensação de importância que ela há anos não desfrutava.
O investimento foi uma questão que muito a ocupou. Durante um dia ou dois, ela vagou como se devaneasse, mas estava deveras absorta em cálculos e especulações. Não queria agir com pressa, ou fazer qualquer coisa da qual poderia se arrepender depois. Mas foi durante as calmas horas da noite, quando permaneceu acordada revolvendo planos em sua mente, que ela viu com clareza o caminho para um uso sensato e apropriado do dinheiro.
Um ou dois dólares deveriam ser acrescentados ao preço em geral pago pelos sapatos de Janie, o que garantiria sua durabilidade por um tempo consideravelmente maior do que o normal. Ela compraria muitos e muitos metros de percal para novas blusas para os garotos e Janie e Mag. Pretendera fazer as antigas bastarem por meio de remendos habilidosos. Mag deveria ganhar outra camisola. Ela vira algumas belas estampas, verdadeiras pechinchas nas vitrines das lojas. E ainda sobraria o bastante para novas meias – dois pares para cada um – e quanta remendagem isso iria poupar por um tempo! Compraria boinas para os meninos e chapéus de palha para as meninas. O vislumbre de sua pequena prole exibindo viço, delicadeza e frescor uma vez na vida a animou e a deixou irrequieta e insone de expectativa.
Os vizinhos às vezes falavam de certos “dias melhores” que a pequena Sra. Sommers conhecera antes de nem sequer pensar em ser a Sra. Sommers. Ela mesma não se permitia nenhuma retrospecção mórbida como essa. Não tinha tempo – nenhum segundo de tempo para dedicar ao passado. As necessidades do presente absorviam cada uma de suas faculdades. Uma visão do futuro como algum monstro sombrio e macilento às vezes a apavorava, mas, por sorte, o amanhã nunca chega.
A Sra. Sommers era daquelas que sabia o valor das pechinchas; que podia passar horas abrindo caminho centímetro por centímetro rumo ao objeto desejado em promoção. Podia fazê-lo a cotoveladas se necessário; havia aprendido a pegar uma mercadoria, segurá-la e agarrá-la com persistência e determinação até que sua vez de ser atendida chegasse, fosse quando fosse.
Mas naquele dia ela estava um pouco fraca e cansada. Fizera um almoço leve – não! quando pensou no assunto, entre alimentar as crianças e arrumar a casa, e preparar-se para o combate nas lojas, ela havia na verdade esquecido de almoçar qualquer coisa!
Sentou-se em uma banqueta giratória diante de um balcão que estava deserto em comparação aos outros, tentando juntar força e coragem para atravessar uma multidão ávida que estava sitiando fortificações de suaves fazendas estampadas e de camisaria. Uma sensação de completo esgotamento a dominou e ela pousou a mão a esmo sobre o balcão. Ela não usava luvas. Aos poucos, percebeu que sua mão havia encontrado algo muito consolador, muito agradável de tocar. Olhou para baixo e viu que sua mão estava sobre uma pilha de meias de seda. Uma placa próxima anunciava que o preço delas havia caído de $2.50 para $1.98; e uma jovem que estava atrás do balcão lhe perguntou se ela gostaria de conhecer sua linha de meias e peúgas de seda. Ela sorriu, como se tivesse sido convidada a examinar uma tiara de diamantes com o objetivo final de comprá-la. Mas continuou a tatear as luxuosas coisas macias e resplandecentes – agora com as duas mãos, erguendo-as no alto para vê-las brilhar, e senti-las deslizar como serpentes por entre os dedos.
Duas manchas rubras de repente apareceram em suas bochechas pálidas. Ela levantou os olhos para a garota.
– Acha que tem algum tamanho 38 por aqui?
Havia várias de número 38. Na verdade, havia mais daquele tamanho do que qualquer outro. Havia um par azul-claro; alguns na cor lavanda, alguns pretos, e vários tons de cinza e canela. A Sra. Sommers selecionou um par preto e olhou para elas muito longa e atentamente. Fingia estar examinando sua textura, a qual a vendedora garantiu ser excelente.
– Um dólar e noventa e oito centavos – meditou em voz alta. – Bem, eu vou levar este par – deu uma nota de $5 à garota e esperou pelo troco e por seu pacote. Como o pacote era pequenino! Parecia perdido nas profundezas de sua velha e gasta sacola de compras.
Depois disso, a Sra. Sommers não foi em direção ao balcão de ofertas. Ela pegou o elevador, que a levou parar um andar superior, na área das salas de espera femininas. Aqui, em um canto isolado, ela trocou suas meias de algodão pelas novas de seda que havia acabado de comprar. Não estava passando por nenhum processo mental intenso ou argumentando consigo mesma, tampouco estava tentando explicar à sua satisfação o motivo de seu ato. Ela absolutamente não estava pensando. Naquele instante, parecia estar descansando daquela função laboriosa e fatigante e ter se abandonado ao impulso mecânico que dirigia suas ações e a libertava de responsabilidades.
Como era bom o toque da seda crua em sua pele! Ela teve vontade de se recostar na cadeira estofada e deleitar-se por um tempo nesse esplendor, o que fez por um instante. Depois, calçou de volta os sapatos, enrolou as meias de algodão e as enfiou na sacola. Em seguida, foi direto ao departamento de calçados e sentou-se para ser atendida.
Ela era implicante. O atendente não conseguia compreendê-la; não conseguia harmonizar seus sapatos com as meias, e ela não se satisfazia facilmente. Ela segurou as saias e virou os pés para um lado e a cabeça para o outro enquanto olhava as botas elegantes de bico fino. Seu pé e tornozelo estavam muito bonitos. Não conseguia se dar conta de que eles lhe pertenciam e eram uma parte dela. Queria um caimento primoroso e moderno, explicou ao jovem rapaz que a atendia, e não se importava com a diferença de um dólar ou dois no preço, contanto que conseguisse o que desejava.
Fazia muito tempo desde que a Sra. Sommers tivera luvas sob medida. Nas raras ocasiões em que comprara um par, elas eram sempre “pechinchas”, tão baratas que teria sido absurdo e irracional ter esperado que fossem ajustadas à mão.
Agora, ela repousava o cotovelo na almofada do balcão de luvas, e uma bela e jovem criatura, delicada e de gestos ágeis, colocou uma “pelica” longa na mão da Sra. Sommers. Vestiu-a com suavidade sobre o punho e a abotoou habilidosamente, e por alguns segundos ambas se perderam numa contemplação admirativa da pequena mão simetricamente enluvada. Mas existiam outros lugares onde se podia gastar dinheiro.
Havia livros e revistas empilhados na janela de uma banca a alguns passos na rua. A Sra. Sommers comprou duas revistas caras como aquelas que costumara ler na época em que estivera acostumada a ler outras coisas agradáveis. Levou-as sem embrulho. Da melhor forma possível, ela levantava as saias nos cruzamentos. Suas meias, botas e luvas bem ajustadas fizeram milagres em seu comportamento – haviam lhe conferido uma sensação de confiança, uma sensação de pertencimento à multidão bem-vestida.
Ela estava com muita fome. Em outra época, teria silenciado o desejo de comer até chegar em casa, onde prepararia uma xícara de chá e faria um lanche com qualquer coisa que estivesse disponível. Mas o impulso que a guiava não lhe permitia admitir tal pensamento.
Havia um restaurante na esquina. Ela nunca havia entrado por suas portas; do lado de fora, às vezes via relances do damasco impecável e do cristal reluzente, e dos garçons de passos suaves servindo pessoas elegantes.
Ao entrar, sua aparência não causou surpresa alguma, nenhuma consternação, como ela em parte temera. Sentou-se sozinha a uma pequena mesa, e um garçom atencioso logo se aproximou para anotar seu pedido. Ela não queria abundância; ansiava por uma pequena refeição refinada e apetitosa, uma costeleta roliça com agrião, uma coisa doce – um crème-frappée, por exemplo; uma taça de vinho do Reno, e, por fim, uma xícara pequena de café preto.
Enquanto esperava para ser servida, ela tirou as luvas muito vagarosamente e as pôs a seu lado. Depois, pegou uma revista e a folheou, cortando as páginas com a lâmina cega da faca. Era tudo muito agradável. O damasco era ainda mais impecável do que parecera através da janela, e o cristal ainda mais reluzente. Havia senhoras e senhores silenciosos, que não a perceberam, almoçando em mesas pequenas como a dela. Podia-se ouvir uma melodia delicada e encantadora, e uma brisa suave estava soprando pela janela. Ela saboreou um pedaço, depois leu uma palavra ou outra, bebeu o vinho ambarino e agitou os dedos nas meias de seda. O quanto isso custava não fazia diferença. Ela contou o dinheiro na frente do garçom e deixou uma moeda a mais em sua bandeja, pela qual ele fez uma reverência como se estivesse diante de uma princesa de sangue real.
Ainda havia dinheiro na bolsa, e sua próxima tentação se apresentou na forma de um cartaz de matinê.
Pouco tempo depois, ela entrou no teatro; a peça havia começado e a casa lhe pareceu estar cheia. Mas aqui e acolá havia assentos vazios, e ela foi acomodada em um deles, entre mulheres vestidas de forma brilhante que lá haviam ido para matar tempo, comer doces e exibir suas vestes espampanantes. Havia muitos outros que estavam lá unicamente pela peça e a atuação. Pode-se seguramente afirmar que nenhum dos presentes apresentava exatamente a atitude que a Sra. Sommers tinha em relação a seus arredores. Ela observou o todo – palco, atores e pessoas em uma vasta impressão, e o absorveu e o apreciou. Riu da comédia e chorou – ela e a mulher espalhafatosa a seu lado choraram pela tragédia. E conversaram um pouco sobre o assunto. E a mulher espalhafatosa enxugou os olhos e fungou em um pequenino quadrado de renda perfumada e delicada e passou sua caixa de doces para a pequena Sra. Sommers.
A peça acabou, a música cessou, a multidão saiu. Era como se um sonho tivesse terminado. As pessoas se dispersaram em todas as direções. A Sra. Sommers foi para a esquina e esperou pelo bonde.
Um homem de olhos atentos, que estava sentado na frente dela, parecia apreciar o estudo de seu rosto pequeno e pálido. Decifrar o que via ali o deixava confuso. Na verdade, ele nada via – a menos que fosse mago o suficiente para detectar um desejo pungente, uma ânsia poderosa de que o bonde nunca parasse em lugar nenhum, mas seguisse adiante com ela para sempre.